GRAMMY 2021 E A CRIMINALIZAÇÃO DO FUNK NO BRASIL

Em 2017, um projeto de lei de criminalização do funk gerou debates acalorados em diversos setores da sociedade. A proposta foi enviada pelo webdesigner Marcelo Alonso, um morador de 47 anos de São Paulo, e teve 21.985 assinaturas de apoio. A relatoria da proposta ficou com o então senador Romário Faria (PSB-RJ), mas acabou não sendo aprovada. Segundo Alonso, o funk é “podre”, manifestação de uma falsa cultura, e deveria ser enquadrado como crime contra a saúde pública, por colocar em risco a criança, o menor adolescente e a família, incentivar o consumo de álcool e drogas, e fazer apologia ao sexo grupal e ao estupro.

O projeto foi muito criticado por músicos, estudantes e especialistas, que classificaram a ideia como discriminatória e racista. Contudo, não é a primeira vez que há tentativa de criminalização de determinadas manifestações culturais no Brasil, sempre ligadas à população majoritariamente pobre e preta, como o samba e a capoeira. Para Danilo Cymrot, doutor em criminologia pela USP, “esse retrato do funk como coisa de vagabundo e criminoso não é arbitrário. Existem outras manifestações que foram perseguidas por serem ligadas a negros, pobres e moradores do subúrbio. Sambistas eram associados à vadiagem, eram chamados de vagabundos. Muitos foram presos”.  Nesse contexto, Luiz Antônio Simas, historiador especialista na história do Rio de Janeiro, do samba e do carnaval, afirma que:

Por aqui, o controle social se estruturou muitas vezes em estratégias de disciplina dos corpos, com inúmeras variantes: são corpos atacados pela catequese, pelo trabalho bruto, pela chibata e pelo confinamento em espaços precários; entre porões de negreiros, senzalas, canaviais e cadeias. Ao lado do controle dos corpos, desqualificaram seus donos como inventores de modos de vida. A ordem foi criminalizar batuques, macumbas, capoeiras, e demais elementos lúdicos do cotidiano dos pobres. Tudo, enfim, que resistisse ao confinamento dos corpos, criando vida.

Esse debate foi reascendido depois do Grammy desse ano (2021), em decorrência da apresentação de Cardi B, com parte do remix funk de “WAP”, seu hit, feito pelo DJ carioca Pedro Sampaio. Enquanto fãs brasileiros comemoravam nas redes sociais, o empresário e produtor musical Rick Bonadio se pronunciou criticando a versão da música. O produtor afirmou que “já exportamos Bossa Nova, já exportamos Rock, Jobim, Ben Jor. Até Roberto Carlos. Mas o barulho que fazem por causa de 15 segundos de funk na apresentação da Cardi B me deixa com vergonha. Precisamos exportar música boa e não esse ‘fica de quatro'”.


O comentário foi motivo de polêmica nas redes e recebeu críticas de diversos setores da sociedade, inclusive de funkeiras como Anitta, Luiza Sonza e Valesca Popozuda, que alertaram sobre a perseguição ao estilo musical.  Desde antes de 1992, ano em que a Furacão 2000 convocou uma passeata contra a proibição dos bailes funk, já existem tentativas de reprimir e criminalizar o funk, em uma relação direta com a criminalização da pobreza no Brasil. Uma CPI municipal chegou a ser aberta, em 1995, para investigar a relação entre o funk e o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Apesar de não ter tido nenhuma comprovação, tal perseguição pelo poder público se mantém até hoje, responsabilizando os bailes funk e os funkeiros por tráfico de drogas, mesmo na ausência de provas. 

A prisão do DJ Rennan da Penha é um dos exemplos dessa situação. A Justiça emitiu um mandado de prisão contra o DJ em 2016, situação na qual ele foi absolvido em primeira instância por falta de provas. Posteriormente, Rennan foi condenado em segunda instância e ficou preso até a prisão por condenação em segunda instância ser derrubada pelo STF, em 2019. Nesse caso, o DJ era acusado de ser olheiro do tráfico no Complexo da Maré e fazer apologia ao uso de drogas no conhecido Baile da Gaiola, do qual é idealizador. Na época, a Ordem dos Advogados do Brasil questionou a prisão de Rennan e afirmou que a condenação seria uma tentativa de criminalizar o funk, demonstrando preocupação com o uso do sistema da Justiça criminal contra setores marginalizados da sociedade.

A criminalização da pobreza pode ser definida como um fenômeno global de maus-tratos e preconceito enfrentado por membros mais pobres da sociedade devido a suas circunstâncias econômicas, muitas vezes influenciado por e perpetuando o racismo, e outras formas de discriminação. Nesse sentido, é importante analisar, como aponta Ana Luiza Flauzina, a tentativa de controle de grupos específicos da população nas práticas do sistema de justiça brasileiro, que naturaliza o racismo, através da violência e da seletividade penal, e expressa desprezo pela vida negra e de grupos marginalizados da população, o que pode ser percebido, inclusive, pelo perfil dos indivíduos privados de liberdade.

As constantes tentativas de criminalizar o funk, por ser um estilo musical que, no Rio de Janeiro, vem das favelas e tem suas raízes no funk americano de James Brown, ícone da cultura negra, aparecem como perseguição aos grupos marginalizados da sociedade. O funkeiro Mr. Catra, nesse contexto, afirmou: “Eu fico sem reação com alguém simplesmente cogitar a ideia de criminalizar o funk. O rap americano tem letras muito piores. Em vez de brigar com o funk, por que não briga contra o rap?”. Dessa forma, enquanto a elite brasileira escuta e canta músicas em inglês que falam abertamente sobre sexo e consumo de droga, perseguem o funk, sob a desculpa da vulgaridade.

Somado a isso, há o desprezo por uma manifestação cultural que é considerada inferior. Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, uma das formas de reprodução de poder pelas elites é a partir do capital cultural. Este está relacionado aos saberes e conhecimentos que são valorizados pela sociedade. Dessa maneira, a cultura que vem da elite é considerada importante e ensinada nas escolas como única possível, enquanto a cultura popular é vista como uma não-cultura, deslegitimada e nem ensinada nas escolas. Os indivíduos das classes mais baixas são, portanto, excluídos do lugar de detentores e produtores de cultura.

Quando Rick Bonadio aborda a Bossa Nova e o Rock como manifestações culturais das quais ele se orgulha de possuir no Brasil e o funk como algo que o envergonha, ele reproduz essa exclusão das classes marginalizadas do processo cultural. Foi somente em 2008, por exemplo, após grandes mobilizações de MCs, organizadores de bailes funk e intelectuais, com grande importância do APAFUNK (Associação de Profissionais e Amigos do Funk), que o funk foi reconhecido como movimento cultural de caráter popular, por uma lei de autoria de Marcelo Freixo (PSOL) e Wagner Montes (PDT).

O atual código penal já revogou antigas medidas de criminalização da capoeira, do samba, do espiritismo, da “magia” e do funk. Contudo, apesar das mudanças legislativas, as práticas dos órgãos de segurança pública e de parte da população continuam discriminatórias. Segundo Cymrot, o funk, ao chegar ao asfalto e até ao Grammy, retraça novas fronteiras socioculturais e espaciais ao invadir espaços nobres das cidades, antes destinados exclusivamente à cultura das elites e classes médias. A resposta social dos grupos dominantes é reduzir o funk a um motivo de “vergonha”, nas palavras de Bonadio, e relacioná-lo à imagem ameaçadora do crime.  Nesse sentido, ainda na perspectiva de Cymrot, o funk se apresenta como resistência, de onde deriva sua potência e sentido políticos.